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Compostagem

Energia, cavalos e uma nova visão ecologista das máquinas

Desde que estudei termodinâmica, a questão da energia segue comigo. Já não lembro mais como fazer as contas, entalpia, expansão adiabática, número de Nusselt, nada, mas o olhar sobre como os processos de transformação de energia acontecem está mais aguçado que nunca. Ainda mais quando passei a estudar e mexer com agrofloresta, microbiologia do solo e compostagem.

Não vou me alongar muito nessa introdução, pois o tema do texto são os cavalos, mas gastarei esse parágrafo com um exemplo real e absurdo sobre o que estou chamando de um olhar crítico neste assunto. Durante sua operação, minha composteira de 1 m3 gera mais CO2 do que a usina termonuclear de Angra dos Reis. Na linguagem do capitalismo verde, que nos últimos anos demonizou o gás carbônico, Angra produz energia limpa, enquanto minha composteira, ao esquentar água para o chuveiro, suja o meio ambiente. É uma baita pegada de carbono! Quem sabe, pra compensar, eu poderia entrar no mercado de créditos de carbono – só que comprando, já que estou poluindo! E assim vai a coisa…

E os cavalos?

Durante muito tempo, tive dificuldades ao tentar dar a proporção de quanto de energia é preciso para um certo processo acontecer. Por exemplo, como fazer alguém entender a quantidade de energia que se gasta num banho quente de 15 minutos? Ou pra fazer um painel solar? Ou então para viajar de avião de Florianópolis até Brasília?

Como trazer para a escala do humano essa coisa tão abstrata que é a energia?

Segundo a wikipedia, por exemplo, energia é “uma das grandezas físicas necessárias à correta descrição do inter-relacionamento – sempre mútuo – entre dois entes ou sistemas físicos.

Não adianta muito, né? Precisamos conseguir olhar, tocar, cheirar!

E foi escrevendo uma postagem sobre como fazer carvão que surgiu o exemplo do cavalo. Dessa vez, farei algumas contas para ampliar nossa noção.

Tudo que come tem que cagar

Então, vamos lá. Um cavalo pesa em média uns 600kg, dependendo da raça. Nosso cavalo médio, então, só para se manter vivo, come em torno de 10kg de feno por dia. Se ele trabalhar umas 4 horas por dia, sua ração vai para 15kg ou mais.

Nada se perde, tudo se transforma. Parte desse alimento vira trabalho (puxar uma carga), parte é usado para manter o animal vivo. E ainda tem uma porção que não é usada diretamente pelo cavalo e vira esterco ou se perde como calor. Um cavalo de transporte, como os milhares que haviam em Londres e Nova Iorque (e no Rio de Janeiro também, obviamente), defeca mais ou menos uns 7kg de esterco, mais um litro de urina por dia.

Certo. Agora vamos pegar um carro pequeno, tipo gol bola ou ford K. Hoje em dia, um carro 1.0 tem uma potência de mais ou menos 100 cv (pra facilitar a conta). Um Opalão 4.1 tem 171 cv, enquanto um Camaro 6.2, 461 cv. O “hp” significa “horse power” ou, em português, “cv” para “cavalo-vapor”. Essa é uma medida comumente usada para quantificar a potência de uma máquina. Ou seja, quanto de energia ela gasta para realizar um trabalho. Ou, como James Watt definiu em 1783, um cavalo de tração médio levantaria um peso de 75kg a uma altura de 1 metro em 1 segundo. Um cv dá mais ou menos 740W.

Voltando ao nosso carrinho “popular”: dá pra ver a quantidade de merda que seria gerada pelos 100 cavalos imaginários que você teria na garagem?

“Em 50 anos, todas as ruas de Londres estarão soterradas por uma camada de 2,75 metros de esterco.” 1894.

Se fossem 100 cavalos, você teria que conseguir 1,5 tonelada de comida, além de se livrar de 700kg de esterco e 100 litros de xixi, to-dos-os-di-as (podendo usá-los por umas 4 horas cada).

Deu para ter uma noção, em termos de energia, do que significa um carro andando por aí? Hoje, o Brasil tem 45 milhões de carros nas ruas… Pra onde iria toda essa merda? (E não estou dizendo que sou contra carros, viu!)

É claro que esse é um exemplo fantasioso. Mesmo que eu tenha tentado fazer parecer, ele não tem nada de científico. Afinal, carros e cavalos são “máquinas” diferentes.

Nova forma ecológica de medir potência

Proponho, então, uma nova unidade de medida de potência: merda-cavalo. Um cavalo-vapor, que são 740W (4 horas de cavalo de carga por dia), rende 7,4kg de merda (aumentei 400g pra facilitar a conta). Logo, 1 merda-cavalo (1kg) equivale a 100 watts. Ou, em termos de consumo, 1 mc = 400Wh.

Essa é uma “medida” de potência que olha para o resíduo do uso dessa potência.

Hmm… Péra. Vamos voltar um pouco na conversa: na Termodinâmica, uma máquina térmica é definida como um dispositivo que converte energia em trabalho. Se eu fosse um ecologista, e não um engenheiro, eu definiria diferente: máquina térmica é um dispositivo que usa a energia de um reservatório quente (entrada) para realizar trabalho (saída útil) sempre gerando um resíduo (saída inútil). O trabalho usado então é a diferença entre a energia que entra e a que sai.

Esquema clássico de uma máquina térmica. Th: temperatura do reservatório quente; Qh: energia de entrada; W: trabalho extraído; Qc: energia que sobrou; Tc: temperatura do reservatório frio.

Como se pode constatar pelas ruas, um engenheiro está sempre falando da energia que se gasta para fazer algo (quanta gasolina precisa, quanto de eletricidade consome, etc.) e do que se ganha (água quente no chuveiro, luz na casa, etc.). Agora, um ecologista coçaria a cabeça e se perguntaria: ué, se toda conversão de energia tem um resíduo, pois não existe eficiência igual a 100%, por que essa informação não está nos projetos/produtos?

Mas agora você pode fazer essa conta em casa!

A unidade merda-cavalo vem para nos mostrar que as nossas escolhas e usos têm consequências.

Um banho de 15 minutos (1/4 hora) num chuveiro de 6000W dá um consumo de 1500Wh. Como 1 merda-cavalo é gerado em 4 horas de trabalho, nosso banho resultaria em 3,75 kg de merda. Basta dividir o consumo em Wh por 400 (4h de 100W) para obter a quantidade de merda-cavalo produzida por um equipamento.

Vejamos alguns exemplos práticos na tabela abaixo. Imagine você usando seus eletrodomésticos e eles largando pela casa um resíduo visível e cheirável, ou seja, merda de cavalo.

EquipamentoConsumo
mensal kWh
kg merda-cavalo
mensal
Geladeira, 120W86,4216
Iluminação, 50W6,015
Liquidificador, 400W0,41
Máquina de lavar, 1000W15,037,5
Ventilador, 100W2,46
Televisão, 100W4,010
Chuveiro, 5000W150,0375
Total246,2615,5

Pela primeira vez, um urbanoide contemporâneo teve a chance de conhecer a dimensão da sua pegada de merda no mundo. Fora das cidades, muita gente sabe o trabalho que dá cortar lenha, ter água em casa, cultivar remédios. Nas cidades, a maioria das pessoas conhece o trabalho que dá ganhar dinheiro para depois obter o conforto que desejam.

Pensando no esquema da máquina térmica, geralmente conhecemos o trabalho feito. Ultimamente, estão nos ensinando a conhecer a energia necessária para realizar o trabalho. A partir de agora, podemos também ter uma ideia da sobra que sempre existe após um trabalho ter concluído (e não estou falando de lixo ou desperdício, nem de trabalho mal-feito).

No futuro, o projeto de uma casa não levará em conta apenas o que se espera ser consumido de eletricidade para depois poder calcular a energia que será entregue. Também constará o espaço destinado às baias de compostagem, onde toda essa merda que produzimos virará adubo para nossa comida.

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